sábado, 9 de dezembro de 2017

Uma Jornada Pelas Distopias Literárias



Admirável Mundo Hoje

Depois de anos fora de catálogo no Brasil, obra mais conhecida de Zamiatín – que teria influenciado Huxley, Orwell e Ray Bradbury – ganha não uma, mas duas novas edições.
Por César Alves

Reflexo do espanto e admiração da espécie humana diante da velocidade com que os avanços técnicos se apresentavam desde o advento da Revolução Industrial e seu impacto no modo de vida e comportamento das civilizações ocidentais – somados ao uso da tecnologia bélica e propagandística no contexto político, não só por regimes ditatoriais, mas também com grande desenvoltura por governos democráticos, para o controle de corações e mentes e demarcações de territórios –, as Distopias foram vistas durante muito tempo como gênero característico do século vinte e pareciam ter perdido a força com o suposto fim da Guerra Fria.
Não é de se admirar, no entanto, que, quando termos como pós-verdade, pós-democracia e pós-humanidade, entre outros, passam a pautar o debate político e social no que diz respeito à compreensão dos rumos da sociedade contemporânea, com direito a artigos e discussões que vão além do universo acadêmico, fazendo-se parte do vocabulário cotidiano, a chamada literatura distópica volte a despertar interesse. De livros e filmes voltados ao público adolescente, passando por séries de tevê, até novas edições dos grandes clássicos do gênero, as sombras das velhas e novas distopias pairam sobre a cultura – pop, de massa e também acadêmica – do século 21, como elemento simbólico essencial para analisar os dias que correm ou advertência para os dias que estão por vir. Prova disso foi o alto número de vendas e empréstimos nas bibliotecas da obra 1984, de George Orwell, registrado nos Estados Unidos, logo após a confirmação da vitória de Donald Trump.
Ao amigo leitor (a), este pobre escriba pede perdão pela longa introdução, que, no entanto, se faz necessária, tendo em vista que este artigo se dedica a fazer um breve passeio pelas principais Distopias literárias do século 20, aproveitando a volta de Nós – para muitos o texto inaugural do gênero distopico na ficção contemporânea –, escrita pelo russo Zamiátin que, após anos fora de catálogo, acaba de ganhar não uma, mas duas novas edições. Ambas traduzidas diretamente do russo.
Antes de entrarmos no tema, no entanto, este que vos escreve pede licença para mais um aparte para tentar descrever o conceito de Utopia. Já que, para os não familiarizados, pode ser difícil compreender sua contraparte sombria, verdadeiro tema de nosso texto.

Bem vindo a Lugar Nenhum ou Paraísos Imaginários para preencher o vazio de um suposto Paraíso Perdido – Palavra de origem grega, significando algo como “lugar que não existe” ou “lugar nenhum” – topos = lugar; u-topos = não lugar –, Utopia quase sempre se refere aos lugares imaginários representando sociedades ideais, conduzidas pela razão, direitos e deveres igualitários, tanto para seus cidadãos quanto para aqueles que os governam, conduzindo a um verdadeiro Paraíso terreno, livre da fome, da ganância, da guerra e os demais males que contaminam e apodrecem a civilização como a conhecemos. Clássicos como A República de Platão; A Cidade do Sol de Tomaso Campanella e Nova Atlantis de Francis Bacon são exemplos dos mais famosos, mas o termo remete diretamente à obra de Thomas Morus, Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia.
Idealizadas e sonhadas por pensadores humanistas indignados com as desigualdades e injustiças da Idade Média e impulsionadas por racionalistas e humanistas a partir do Renascimento, as narrativas utópicas foram populares até meados do século dezenove e se tornaram as bases para a idealização das comunidades igualitárias propostas por pensadores como Charles Fourier, identificadas como “Socialismo Utópico” por Karl Marx.

Sobre a Necrópole da Liberdade, a Nova Ordem ergue sua Cidade - Se as Utopias representavam o sonho de um futuro dourado para a evolução de nossa espécie como sociedade, o aguardado raiar das luzes sobre o longo domínio das trevas históricas, revelando uma fé quase ingênua na inclinação dos homens para o bem, o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, as crueldades perpetradas pelas nações esclarecidas, massacrando os povos que prometiam salvar da selvageria, culminando em barbárie colonial e neo-colonialista, mas, principalmente, com a chegada do século vinte, que trouxe consigo duas guerras mundiais, seus genocídios sistemáticos e morte em escala industrial, representaram um choque de realidade e a confirmação de que as sombras que cobriam o coração humano eram ainda mais densas do que o pior dos pessimistas poderia imaginar.
O resultado no imaginário literário ocidental foi o surgimento da contra-utopia ou Utopia negativa, chamada corretamente Distopia. Aqui, o sonho das sociedades fraternas e igualitárias dá lugar ao pesadelo do controle estatal de sociedades formatadas e automatizadas.
Em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o autor de As Portas da Percepção, Contraponto e A Ilha (que também cabe no gênero distopico) concebe um mundo organizado através de castas, onde as pessoas são concebidas em laboratórios, através da engenharia genética, já programadas para exercer as funções que lhe cabem e o lugar que devem ocupar dentro do sistema organizacional que rege a sociedade. Aqui o controle é exercido através de uma droga, o soma, espécie de fármaco tranqüilizante de efeito social e político que inibe pensamentos e questionamentos contrários ao Estado, bloqueando as idéias perigosas com a falsa sensação de felicidade, o que é reforçado com o incentivo, quase obrigatório, do exercício pleno do hedonismo programado. (Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – tradução: Lino Vallandro – Globo Livros – 312 páginas)
Talvez a mais famosa das Distopias, 1984 foi escrito por George Orwell e publicado em 1948, pouco depois do término da segunda grande guerra. Fortemente influenciado pelos horrores revelados durante e ao final do conflito, em face às nuvens carregadas que se formavam no horizonte, com a inauguração da era atômica e o início das disputas entre os vitoriosos por espólios de guerra e territórios dos derrotados, que culminariam na pesada tormenta que ganharia o nome de Guerra Fria, a distopia de Orwell ganhou tanta notoriedade que termos como Big Brother e novilíngua, entre outros, passaram ao vocabulário ocidental como expressões de significado reconhecido mesmo por quem nunca leu o livro.

Descrevendo uma sociedade sob o comando do Grande Irmão – espécie de “Pai da Pátria”, cuja mão pesada educa, pune e controla, e olhos que vigiam, através de telões espalhados nos prédios, repartições, fábricas e até mesmo nos dormitórios dos cidadãos –, que comanda através de técnicas baseadas na ordem e na aniquilação do individuo, tendo como instrumentos a propaganda, o controle da mídia e da própria história, como nos mostra o personagem central, cujo trabalho burocrático consiste em pesquisar e reescrever matérias e trechos de livros para que não contradigam a versão do regime.
O autor costumava dizer que a ideia teria surgido de sua experiência e do trauma histórico causado pela ameaça fascista de Hitler e Mussolini e a maneira como os déspotas conseguiram levar adiante sua loucura e conquistar a adesão de seus compatriotas que abraçaram, com raros focos de resistência, sua insanidade. Orwell, que até o fim de seus dias considerava-se um socialista, no entanto, não limita sua crítica aos regimes de direita e reconhecia o quanto havia em sua distopia (e no próprio Grande Irmão) da União Soviética sob o comando de Stalin. Portanto, sua obra era um alerta contra os perigos dos regimes ditatoriais e sua propaganda doutrinária, independente do viés ideológico.
Ou seja, 1984 é fruto tanto de Auschwitz e do Holocausto fascista quanto o é dos Gulags e campos de trabalhos forçados da Rússia comunista de Stalin. (1984 – George Orwell – Companhia das Letras – 416 páginas)

Entretenha-nos até a morte - Não só por ser a distopia predileta deste que vos escreve, mas, principalmente, por ser aquela que mais se aproxima dos dias que correm, Fahrenheit 451 não poderia ficar de fora. Aqui não estamos falando de uma sociedade em um futuro distante controlada por um regime totalitário, mas sim de um lugar em um tempo e espaço imaginário que pode muito bem ser comparado com o nosso presente. Em Fahreinheit 451 o condicionamento social é feito através do entretenimento barato, da indústria cultural e de medicamentos.
Concebida pelo genial Ray Bradbury, o ponto principal dá obra já nos é dado no excelente título: 451 graus fahrenheit é a temperatura de combustão do papel. Num mundo onde as pessoas são condicionadas a evitar ideias que as conduzam ao questionamento de seu modo de vida e seu papel social como indivíduos, os livros foram banidos como perigoso instrumento desestabilizador social. Todos vivem sob o efeito de uma felicidade anestésica, mantida através de equipamentos audiovisuais, espécie de monitores televisivos que ocupam uma parede inteira, transmitindo novelas e shows de variedades exibidos 24 horas por dia, em tempo real, e com os quais os telespectadores podem interagir – única forma de interatividade aceitável, aliás, já que mesmo os encontros com amigos e familiares são dedicados a falar sobre a grade de programação e seu “conteúdo” –, o que é reforçado com doses diárias de um poderoso fármaco. As casas são à prova de fogo e, não havendo mais a necessidade de um corpo de bombeiros, aos antigos combatentes de incêndios foi dada uma nova missão: incinerar livros e caçar aqueles que cometem o crime de esconder bibliotecas em suas casas.
Ao contrário da maioria das tramas do gênero, em Fahreinheit 451 as bases estruturais da sociedade não foram criadas após uma hecatombe nuclear, uma guerra ou a tomada do poder por um sistema ditatorial. Como o autor deixa claro em algumas das passagens mais marcantes do livro, não se trata de uma sociedade iletrada e analfabeta. As pessoas sabem ler, mas o conhecimento da leitura serve apenas para interpretar os manuais de funcionamento dos equipamentos e gadgets que os mantém distraídos e as bulas dos remédios que garantem sua anestesia comportamental. Logo, a opção pelo conformismo e a recusa aos livros foram tomadas pelas próprias pessoas. O que é mais assustador. (Fahrenheit 451 – Ray Bradbury – Globo Livros – 215 páginas)

Se não a Distopia das Distopias, Nós, do russo Ievgenin Zamiatín, merece lugar de destaque como a Distopia que teria inspirado todas as tramas distópicas que a seguiram. Ou, pelo menos, teria tido forte influência sobre as obras mais relevantes, dentre aquelas que ousaram imaginar o perigo de Utopias negativas, como um alerta para o que pode nos aguardar na esquina de um futuro não muito distante. É inegável sua influência sobre as obras comentadas anteriormente e outras A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, que só não foi descrita aqui por ter sido alvo de outro texto, assinado pelo amigo aqui, que pode ser lido no link: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/01/laranja-mecanica-distopia-horrorshow-de.html
Narrado em primeira pessoa na forma de um diário por D-503, operário que trabalha na construção de uma espaçonave projetada por engenheiros do governo para a missão de espalhar para o resto do universo o evangelho do Estado Único, Nós descreve uma sociedade controlada através da eliminação do conceito de liberdade e da noção de indivíduo, além da criminalização da imaginação.
Como o próprio nome do personagem deixa claro, na realidade imaginada por Zamiatin o conceito de indivíduo foi completamente apagado, em prol de uma existência coletiva. Aqui, as pessoas são identificadas por números e letras, como setores de uma linha de montagem ou engrenagens de um motor. A população mundial foi reduzida para 10 milhões de habitantes que vivem em casas padronizadas, com paredes de vidros transparentes da cor verde, de maneira a coibir desvios comportamentais ou qualquer ato fora do padrão preestabelecido.
Com suas vidas expostas, todos vigiam e são vigiados, tornando-se também responsáveis pela manutenção da existência de paz e felicidade, alcançadas depois da revolução que eliminou e criminalizou a liberdade. Um preço pequeno, segundo eles, a ser pago pela segurança e felicidade perpétuas, já que a liberdade engendra a violência e alimenta pensamentos inadequados, que podem envenenar a sociedade com o mal da solidão, da tristeza e – ainda mais perigoso – da imaginação.
Para compensar, todos tem direito a uma hora de isolamento para momentos de intimidades sexuais, desde que na data, horário e com o parceiro autorizados, conforme consta no cartão rosa, emitido por burocratas do governos e sem o qual qualquer relação íntima ou ato de socialização clandestina constitui crime mortal. D-503 parece satisfeito com sua condição, chegando a exaltar as benesses do Estado Único, mas é justamente depois de um destes encontros que acontece a grande reviravolta e suas certezas são abaladas. O tremor ideológico e emocional é causado por I-330, uma mulher misteriosa, com hábitos e idéias que, a princípio, D-503 condena, embora não consiga se afastar dela. Logo o personagem é apresentado a um mundo de emoções e sentimentos como o sonho, a fantasia e o amor, proibidos e condenáveis com a morte.
Nascido em Moscou, em 1884, Ievguenin Zamiátin formou-se em engenharia naval e trabalhou como supervisor na construção de navios russos. Apoiou Revolução de Outubro de 1917, mesmo ano em que passa a dedicar-se à literatura em tempo integral. Ministra aulas na recém-fundada Casa das Artes de Petrogrado e é eleito presidente da União Pan-Russa de Escritores. Em 1919 é preso por suspeita de associação ao partido dos Socialistas Revolucionários. Nos anos seguintes termina a redação de Nós, sua obra mais conhecida, mas o romance não recebe autorização de publicação no país. O livro acaba sendo publicado numa tradução para o inglês, nos EUA, em 1924 – na Rússia, a obra só seria publicada em 1988.
 O livro já ganhou diversas edições no Brasil – uma delas com o título de O Muro Verde –, mas estava fora de catálogo há anos. O que dá ainda mais motivos para celebrar a chegada de duas novas traduções em português. Ambas feitas diretamente do russo.

A edição da Aleph, traduzida diretamente do russo por Gabriela Soares chama atenção por seu belo acabamento gráfico e por conter extras de respeito, como uma carta do próprio autor a Stalin, na qual solicitava ao ditador autorização para deixar seu país, já que sua permanência ali não fazia sentido, uma vez que seus livros não eram publicados e não podia trabalhar; e também um artigo assinado por George Orwell no qual o autor de A Revolução dos Bichos estabelece conexões entre a obra de Zamiatin e o Admirável Mundo Novo de Huxley – concluindo que o primeiro, certamente, influenciou o segundo, o que também pode ser dito a respeito de 1984, publicado anos depois. A edição da Editora 34 faz parte da coleção Narrativas da Revolução (que será alvo de um próximo artigo aqui). Com tradução de Francisco Araújo, também traz o excelente prefácio de Cássio de Oliveira que ajuda o leitor a entender a importância da obra no contexto em que foi escrita e seu valor ainda para nossos dias. Embora se trate do mesmo texto, ambas as edições possuem qualidades e complementos que as distinguem e – em caso de dúvida e condições financeiras – recomendo aos amigos ficarem com as duas.


Serviço:

Nós
Autor: Ievguêni Zamiátin

Tradução: Francisco de Araújo
Editora 34
288 páginas

Tradução: Gabriela Soares
Editora Aleph
344 páginas

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