sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Laranja Mecânica - A Distopia Horrorshow de Burgess

 
 
A Distopia Horrorshow de Burgess
 
Famosa pela adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick, a obra de Anthony Burgess gerou polêmica, foi envolta em mitos e ainda hoje é objeto de culto.
por César Alves
 
Ó, meus irmãos! Goolyava eu como Office-boy na época. Vasculhava Oddy-knocky as estantes de uma bibblio do centro de São Paulo, quando coloquei meus glazzes em um exemplar surrado da tradução de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Eu era apenas um malchik , um tanto quanto nadmenny, como é próprio da idade, e me interessava por musica e literatura. Ó, irmãos! Eu devia ter uns 15 anos de idade, mas sabia que era a raskazz que inspirara aquele sinny de Stanley Kubricky, que eu nunca havia viddiado e, mesmo assim, era meu sinny preferido. Eram dias de rebeldia e dar um crast até que não seria difícil. Mas acabei kupeteando o livro e não me arrependi de deixar um pouco de meu tão suado deng com o vendedor da loja. Assim fui loveted e me tornei um plenny de Burgess e sua narrativa, um tanto quanto spoogy, carregada de strack, mas ainda hoje um dos momentos mais horrorshow de minha aventura pelo universo da literatura.
Para alguns leitores, o parágrafo que abre o texto pode parecer estranho e até incompreensível. Não para os que assistiram à clássica adaptação cinematográfica feita por Stanley Kubrick em 1971 e muito menos para os que leram Laranja Mecânica como foi concebida e ainda guardam na memória as gírias utilizadas pelos protagonistas do mais famoso romance de Anthony Burgess. Reconhecido como um dos marcos da literatura popular do século vinte, o livro está completando cinco décadas desde que, pela primeira vez, chegou às livrarias britânicas, atingindo os súditos da rainha como uma bomba. O impacto da explosão ecoou mundo afora e ainda hoje reverbera.
A data tem sido comemorada com homenagens em todo o globo, como a exposição programada pela Universidade de Manchester, em parceria com a Fundação Internacional Anthony Burgess e o Arquivo de Stanley Kubrick, que faz um apanhado do legado e o impacto da obra através dos anos. No Brasil o livro é publicado desde os anos 1970, não sendo difícil conseguir um exemplar das antigas edições em sebos. A mais recente tradução, de Fábio Fernandes, foi publicada pela Editora Aleph de São Paulo, a mesma responsável pela melhor surpresa envolvendo o cinquentenário da obra por aqui. 
Com lançamento programado para a última semana de novembro, exclusivamente para o mercado brasileiro, Laranja Mecânica ganha versão luxuosa, com capa dura, ilustrações inéditas de artistas consagrados, reprodução do manuscrito original, além de uma entrevista e textos inéditos do próprio Anthony Burgess sobre a obra. Laranja Mecânica – 50 anos tem capa e projeto gráfico de Pedro Inoue, designer gráfico brasileiro de renome internacional que trabalhou com nomes como Demien Hirst, Ryuchi Sakamoto e David Bowie – para quem criou as capas dos álbuns Heathen (2002) e Reality (2003) –, entre outros. Os capítulos foram ilustrados por artistas de renome internacional, como o brasileiro Angeli, que dispensa comentários; o inglês David McKean, idolatrado por seus trabalhos com o personagem Sandman de Neil Gaiman e pelo antológico e sombrio Batman Asilo Arkham, considerado um marco dos quadrinhos modernos; e o premiado animador, ilustrador e artista plástico argentino, Oscar Grillo. Convidados a recriar visualmente sua impressão pessoal do imaginário de Anthony Burgess, o resultado é aqui reproduzido pela primeira vez, o que torna a nova edição histórica. Desde já item de colecionador, o lançamento classifica-se como uma das mais completas edições do livro até o momento, não havendo nada parecido nas diversas traduções ao redor do mundo.

Distopia na década das utopias
Escrito em apenas três semanas no início dos anos sessenta, a inspiração teria vindo de artigos de jornais sobre brigas entre Rockers e Mods – dois dos primeiros grupos de jovens do advento estético e comportamental, detectado e muito estudado nas décadas seguintes, das tribos urbanas – e de uma manchete policial envolvendo estupro e assassinato. Um dos muitos mitos sobre a concepção de Laranja Mecânica conta que a obra é fruto de uma falha médica. Apesar de já respeitado no meio intelectual e celebrado como autor de livros e ensaios sobre literatura, na época Burgess passava por situação financeira difícil. Para piorar, o escritor teria sido diagnosticado como portador de uma doença fatal. Os médicos calculavam que lhe restava pouco mais de um ano de vida. Desenganado e preocupado com o futuro de sua esposa e filhos, o escritor se isolou em uma casa do interior decidido a escrever quinze livros no prazo de seis meses. Com o retorno dos direitos autorais, esperava garantir a subsistência de sua família depois de sua morte. Como era de se esperar, não alcançou sua meta. Mas conta-se que, durante o período, teria escrito seis novos títulos. Um deles seria justamente A Laranja Mecânica.
Laranja Mecânica classifica-se como uma distopia futurista, cujo pano de fundo é uma Londres do Século XXI, decadente e assolada por gangs de jovens que se divertem praticando os mais cruéis atos de violência. Narrado em primeira pessoa por Alex, o romance foi escrito quase como uma confissão, na qual o personagem convida o leitor a ouvir sua historia e compartilhar de sua tragédia pessoal. O livro é dividido em três partes, cada uma com sete capítulos e, na nova edição, ilustrada por um dos artistas. Com desenhos de Dave McKean, na primeira parte o delinquente nos apresenta a seu mundo, vangloriando-se dos tempos em que era o líder de seu bando e, junto com os integrantes deste, praticava uma concepção muito particular de liberdade, baseada em drogas, sexo e os mais extremos atos de violência. O calvário de Alex é descrito no trecho intermediário da narrativa, aqui acompanhada pelo traço inconfundível de Angeli. Preso e condenado por suas atrocidades, ele se oferece como cobaia para um programa que visa recuperar delinquentes juvenis através de lavagem cerebral, o Tratamento Ludovic. O que a princípio parece uma estratégia para escapar da prisão, acaba por se tornar uma tortura. A impressionante descrição do procedimento – bem como a forma como Kubrick a representou nas telas – tornou-se inesquecível. A tragédia da readaptação à vida cotidiana e os efeitos do tratamento – que destrói seu livre arbítrio, tirando inclusive seu amor pela Nona Sinfonia de Beethoven, único traço sensível ou humano de sua personalidade – completam a terceira parte que conclui a narrativa com um final surpreendente. A concepção visual ficou a cargo do argentino Oscar Grillo.
Burgess gosta de sutilezas textuais e simbólicas, o que dá a seu texto carga extra ao conteúdo dramático. Nas entrelinhas, deixa pistas de suas verdadeiras intenções, quase como um
prêmio para o leitor mais atento. Por exemplo; o nome do personagem, Alex, faz uso da palavra “lei” em latim (lex), sugerindo a-lex (algo como fora da lei, sem lei ou além da lei). Além de ser uma clara referência ao jovem e violento conquistador macedônio Alexandre, o Grande. O fato de os personagens beberem leite, símbolo de pureza, misturado com aditivos químicos, também não é mero capricho, além de a soma das três partes, com sete capítulos cada, resultar em 21. Assim, o livro termina justamente no capítulo de número correspondente à idade que marca o fim da tolerância legal aos erros cometidos pelos mais jovens e, na maioria das culturas, a entrada definitiva na maioridade, quando o individuo passa a responder perante a lei por seus atos.
Estudioso e amante da obra de James Joyce – escreveu um respeitado trabalho sobre o irlandês, publicado no Brasil como Homem Comum Enfim (Cia das Letras) –, foi do autor de Ulisses que Anthony Burgess tirou a inspiração para o vocabulário nadsat, que aparece na fala dos personagens como gírias. A “língua”, mais compreensível através do glossário publicado no livro, foi desenvolvida pelo autor misturando palavras do inglês, do russo e, principalmente, expressões idiomáticas dos cockney, ingleses da classe operária, que nasceram ou vivem em determinada área de Londres, cujo sotaque possui sonoridade e vocabulário quase incompreensíveis para não familiarizados, além de características e expressões idiomáticas muito próprias. O título, aliás, teria vindo de uma expressão cockney que certa vez o autor ouvira em um pub: as queer as a clockwork Orange – algo como: desorientado feito uma laranja mecânica.
Publicado em 1962, desde então a obra vem fascinando gerações de leitores. Quase dez anos depois, o texto chegou às telas do cinema, pelas mãos de Stanley Kubrick, resultando na película que figura hoje na maioria das listas de “Cem Maiores Filmes da História”. O sucesso do filme elevou o livro à categoria de Best seller, alçando o nome de Anthony Burgess ao de escritor pop. Além do cinema, A Laranja Mecânica ganhou adaptações teatrais e influenciou de astros de rock à moda, da arte dos museus à praticada nas ruas. Seus personagens se tornaram parte da iconografia do século vinte. A estética visual dada por Kubrick à gang de Alex, na interpretação inesquecível de Malcolm McDowell, chapéu coco, macacões brancos, cílios postiços e suspensórios, foi utilizada em inúmeros videoclipes, ganhou citação em episódios d´Os Simpsons e é comum em estampas de camisetas e tatuagens. Ainda hoje a obra é tema de artigos e teses, não só de literatura como também de estudos que vão da Filosofia ao Direito Penal.
 
“Não é um hino à violência, mas à liberdade”.
Comprovando o gosto que a Historia nutre pela ironia, a década que abriu com o lançamento de Laranja Mecânica tem como um dos atos que a encerraram Charles Manson e seus seguidores trazendo a Ultraviolence dos personagens do livro para a realidade, no assustador ataque à mansão do casal Roman Polanski e Sharon Tate, em 1969. Mas, quando foi escrito, eventos como o Massacre de Columbine sequer poderiam ser imaginados. Muito menos, um garoto fuzilando pessoas em um cinema, acreditando ser um supervilão de quadrinhos. Nem por isso – ou talvez por isso –, a obra deixou de ser considerada uma apologia à violência juvenil. Principalmente depois do filme de Stanley Kubrick alavancar sua popularidade, muitas vezes Anthony Burgess foi obrigado a esclarecer que o livro é um libelo em favor do livre
arbítrio e não uma celebração da delinquência juvenil. “Não é um hino à violência, mas à liberdade. É melhor ser malvado por escolha do que bom por lavagem cerebral”, teria dito. Ainda assim, nos Estados Unidos, até meados da década de 1980 a obra foi publicada com a supressão do último capitulo.
Triste, porém verdadeiro, é que, quando lemos notícias sobre jovens bem nascidos que incendeiam índios e sem tetos por pura diversão, um garoto que descarrega suas frustrações na forma de artilharia pesada contra crianças em uma escola e detalhes do caso de Suzanne Von Richthofen e irmãos Cravinhos, a violência de Alex e seus amigos, embora ainda impactante, talvez não cause tanto espanto – ou ganha proporções premonitórias, pensaria o mais alarmista dos leitores.  A tragédia histórica, no entanto, oferece oportunidade para uma releitura da obra de Anthony Burgess, sem a carga polêmica relacionada ao seu conteúdo violento. A verdade é que, cinquenta anos depois, Laranja Mecânica ainda provoca e chama a atenção por sua ousadia e criatividade.
 
 
A Ultravilence pela ótica de Stanley Kubrick volta em Blue-Ray
O clássico dirigido por Stanley Kubrick, que levou o imaginário de Anthony Burgess às salas de cinema, comemorou 40 anos em 2011. Para marcar a data foi lançada no mercado norte-americano uma caixa especial comemorativa do filme. Contendo dois discos, A Clockwork Orange 40th Anniversary Edition traz material inédito sobre a produção e uma série de extras. Indispensável para os fãs, além do filme, a caixa traz um making off, dois documentários; Turning Like a Clockwork  e Still Tickin´ The Returno of A Clockwork Orange, além de um longo depoimento de Malcolm McDowell que, de forma brilhante, encarnou o perturbado anti-herói criado por Burgess. O ator ficou marcado pelo papel, sendo quase impossível separá-lo do assustador e ao mesmo tempo fascinante Alex DeSage de A Laranja Mecânica.
 
Curiosidades: 
O underground norte-americano já havia sido contaminado pela ultraviolence de Burgess desde os anos sessenta.  Antes de Stanley Kubrick, o artista pop Andy Warhol já teria utilizado Laranja Mecânica como base para o roteiro de um de seus filmes experimentais. Vinyl foi dirigido por ele em 1965. E, ainda no submundo de Nova Iorque, Clockwork Orange foi o nome escolhido por uma banda de lá que lançou um punhado de singles entre 1966 e 67, antes de desaparecer. Suas canções são cultuadas hoje em dia em coletâneas de one-hit-wonders (artistas musicais de um só sucesso) dos anos sessenta, como a série Nuggets, que fazem a cabeça dos fãs de bandas obscuras da época.
O rock, aliás, tem uma relação antiga, tanto com o livro, quanto com o filme. David Bowie coloca o livro de Burgess entre suas leituras prediletas, citando e se deixando influenciar pela obra em vários momentos de sua carreira. Usar a palavra droogie , amigo em nadsat, na letra de Suffagette City, por exemplo, é uma de suas homenagens.
Ainda no rock, a mais internacional das bandas brasileiras, Sepultura, se inspirou em Laranja Mecânica para compor sua Ópera Metal, A-Lex, último álbum da banda lançado em 2008. E, já que estamos no Brasil, o país passou perto de ter um laço ainda mais estreito com a obra,
desta vez em sua versão cinematográfica. Exilados na Inglaterra no fim dos anos sessenta, Antonio Bivar (escritor, dramaturgo e jornalista) e Zé Vicente (dramaturgo, autor de Hoje é Dia de Rock) curtiam os momentos finais da Swinging London. Trajando roupas extravagantes e em estado de euforia típico de quem prefere outros remédios àqueles da mamãe, como diz a canção do Jefferson Airplane, foram convidados – com contrato e tudo, dizem – a fazer parte do elenco do filme de Stanley Kubrick, ainda na fase embrionária. Ambos acabaram deixando Londres pouco depois a trabalho, só para mais tarde descobrirem que foram aprovados para compor o elenco e perderam a chance, já que não foram encontrados. Nada horrorshow isso.

Pequeno glossário Nadsat
(para melhor compreender o primeiro parágrafo)
 
Bibblio: biblioteca, livraria
Crast: roubar
Deng: dinheiro
Glazz: olho
Gooly: Trabalhar
Kupet: comprar
Loveted: capturado
Malchick: garoto
Nadmenny: arrogante
Oddy-Knocky: Solitário
Plenny: prisioneiro
Raskazz: historia
Sinny: filme, cinema
Spoogy: aterrorizar, assustar
Strack: horror
Viddy: ver, assistir

Observação: O texto foi escrito às vésperas do lançamento da edição comemorativo de 50 anos da Editora Aleph, mas, por um daqueles acidentes inexplicáveis de fechamento, acabou caindo na última hora e só agora é publicado.

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